Em debate, a crise do jornalismo – e as saídas
Outras Palavras abre curso e série de entrevistas sobre tema quase ausente nas grandes mídias. Objetivo: entender por quê, na era da dominação tecnofinanceira, o jornalismo não serve mais ao capital; e formular políticas para recriá-lo
Publicado 11/11/2024 às 19:16 - Atualizado 11/11/2024 às 19:29
Em tempos ásperos, é preciso buscar o novo. Em meio ao desencanto crescente com a democracia e a um declínio prolongado do jornalismo, esta revista decidiu apostar na formulação de alternativas para ambas as crises. Uma entrevista com o sociólogo e cineasta Leandro Sarava, às 19h desta segunda-feira (11/11), dará início a um esforço de investigação, debate público e construção de políticas. Diálogos subsequentes ouvirão, entre outros, Bruno Torturra, Luís Nassif, Marilena Chauí (a confirmar), Rosemary Segurado, Sérgio Amadeu, Rafael Evangelista e outros pensadores que têm algo a dizer sobre o tema. Numa segunda fase, as entrevistas, acrescidas de outros conteúdos, comporão dois cursos. Todo o projeto é parte do plano de trabalho de um Pontão de Cultura, executado em parceria pelo Coletivo Digital e por Outras Palavras.
Queremos examinar em profundidade a crise do modelo empresarial de jornalismo. Mas não pretendemos nos deter no diagnóstico. Vamos sondar saídas – em especial os caminhos para que a atividade jornalística seja mantida, essencialmente, com recursos originários da sociedade, transferidos pelo Estado por meio de mecanismos que asseguram independência e qualidade editorial.
O declínio do jornalismo corporativo é visível para onde quer que se olhe. Os jornais estão mais distantes que nunca do exame crítico dos grandes temas nacionais ou internacionais. Sua cobertura reduz-se, na Política, às miudezas e fofocas da vida institucional; e na Economia, a ecoar as interpretações (e, frequentemente, as ameaças) dos “operadores de mercado” – um eufemismo para rentistas. As centenas de revistas existentes no Brasil até a virada do século estão hoje reduzidas a um punhado de títulos, pouco atraentes e de influência cada vez mais reduzida. Os portais de internet degradaram-se, ao mimetizar a superficialidade temática e a estética mal-acabada das postagens em redes sociais.
Não é um fenômeno apenas brasileiro (embora aqui a queda assuma tons dramáticos). Em todo o Ocidente, grandes jornais encolhem suas redações (como fez o New York Times em sucessivas rodadas) ou deixam-se vender para grandes grupos econômicos (como o Washington Post, hoje controlado por Jeff Bezos).
Por algum tempo, a internet representou um respiro. Há cerca de vinte anos, era o território onde se acessavam publicações internacionais relevantes e um jornalismo multitemático e renovador, produzido pelos blogs. Mas esta fase está sendo sepultada pela onipresença das redes sociais; pela determinação de seu conteúdo por algoritmos que privilegiam a estridência e o conflito, em busca de visualizações e receita publicitária; e pela emergência inevitável, neste ambiente, das fake news. Caso se mantenha controlada por megacorporações, a Inteligência Artificial poderá agravar este quadro, como já começou a ocorrer.
A deterioração do jornalismo está em contraste com o desenvolvimento técnico. As novas tecnologias permitiram, ao contrário do que se dá hoje, produzir informação e comunicação de profundidade como nunca antes na história humana. A circulação das notícias e sua interpretação é instantânea. Os dados que permitiriam apurar e analisar realidades complexas são produzidos em abundância inédita. Mas há dois obstáculos gigantescos. Primeiro: o que Leandro Saraiva – nosso primeiro entrevistado – chama de “concentração absurda do poder propiciada pela tecno-financeirização” está tornando a democracia supérflua. Ela é, na verdade, indesejável, para as megacorporações que tomam as decisões fundamentais – situando-se acima dos próprios governos, na escala de poder – mas estão livres do escrutínio público. Veja-se, por exemplo, como “os mercados” “exigem” o “ajuste fiscal” antiinvestimento público no Brasil ou como, na Europa, a guerra prossegue – e pode agravar-se e se espalhar – apesar de indesejada pela maior parte das opiniões públicas.
Em ambos os casos, é notável o autonomismo dos processos; ou seja, o modo como são transformados em fatos consumados à revelia da vontade política das sociedades. É ainda mais assustador que o planeta seja inundado, todos os dias, por uma enxurrada de imagens retratando o morticínio cometido por Israel na Palestina e no Líbano; e que as sociedades e governos não encontrem, na política, meios para frear o genocídio transmitido ao vivo diante de nossos olhos.
A segunda barreira, consequência direta da primeira, é o que Leandro Saraiva chama de “fragmentação da experiência subjetiva e da própria ideia de tempo e de história”. Se para os grandes poderes a democracia é incômoda, então é perfeitamente natural que ajam para “manter as pessoas distraídas”. Ou seja: “Não é mais preciso discutir a organização do mundo; basta mobilizar para lá e para cá, em termos de ondas afetivas, as massas. Não é mais necessário o jornalismo”.
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Como encarar este cenário claramente orwelliano? É preciso lembrar, antes de tudo, que as contradições continuam a pulsar. O sistema que deseja o controle absoluto é incapaz de oferecer vida aceitável à maior parte da população do planeta, ou de tomar até mesmo medidas paliativas contra a catástrofe climática. E a financeirização, fonte da hiperconcentração de riqueza e de poder, é também o que mantém, no Ocidente, a produção estagnada ou o risco constante de novos terremotos nos cassinos globais do rentismo.
A instabilidade do sistema, porém, não fará seu trabalho sozinha. É preciso formular as saídas – no caso, para a reconstrução da democracia e do jornalismo. É este debate, quase ausente no Brasil, que Outras Palavras quer provocar. Nossa principal hipótese de trabalho – a ser debatida e aprofundada nos próximos meses – é: também aqui a resposta passa pelo investimento público, pela aposta no Comum.
Se o jornalismo é essencial à democracia, mas tornou-se descartável para o capitalismo contemporâneo, então é preciso que a sociedade mobilize-se para financiá-lo. O Estado precisa garantir que parte da riqueza social seja canalizada para produzir as informações e interpretações capazes de orientar as sociedades em suas escolhas – ou seja, permitindo-lhes retomar a democracia em suas mãos.
Esta opção implica – sabemos – desafios e problemas. O primeiro é alcançar consensos. A luta para alterar o atual ecossistema de (des)informação, alienação e distração permanentes – para voltar aos conceitos de Leandro – será árdua e prolongada. Por isso mesmo, é preciso começá-la…
O segundo risco é o de cooptação. Sabe-se que os Estados têm sido máquinas políticas avessas à crítica e à dissidência. Como enfrentar esta sua resistência, se eles serão necessários à tarefa de reconstruir o jornalismo? As entrevistas e os cursos sondarão caminhos. Os internacionais, no próprio campo editorial. Embora insuficiente, a autonomia de um editor da BBC britânica é certamente maior que a de um seu colega numa publicação comercial brasileira. Ou outras relações em que, sendo o financiador, o Estado não interfere na liberdade de quem produz conhecimento, porque há mecanismos refinados de mediação. O ministro da Educação, ou o governador do Estado, não decidem quem serão os professores nas universidades públicas brasileiras, muito menos controlam os currículos e as opiniões emitidas nos cursos.
Ao menos parte das dificuldades que as forças da chamada esquerda vive hoje pode ser atribuída a um estancamento da teoria. O capitalismo transmutou-se – e com ele as formas de produzir riqueza, de distribuí-la, de exercer hegemonia política e simbólica sobre as sociedades. Em muitos casos, a resistência ao sistema continua a fazer as mesmas críticas e a defender os mesmos projetos que tinham eficácia nos séculos passados, mas tornaram-se inócuos agora. Com as novas entrevistas e cursos, Outras Palavras busca dar uma contribuição – certamente muito modesta, mas muito empenhada – para enfrentar este déficit.
Grata até hoje pelas iniciativas de resistência da autonomia do indivíduo cidadão que o povo se mantem fazendo. Fica triste que a escala seja baixa e o alcance manipulável, mas continuem firmes no orgulho próprio de fazer algo maior que nós mesmos.
Que maravilha! Eu amo vocês do fundo do meu coração. Gostaria de ter acompanhado este vídeo junto com mil pessoas e então ovaciona-los ao final. Vai dar certo!